Brasileiro inventor da bina cobra direitos na Justiça

Conheça a história do brasileiro que pode se tornar um dos homens mais ricos do mundo se vencer a batalha jurídica que trava há 14 anos para provar que inventou o bina, sistema que identifica chamadas telefônicas

por Tarso Araújo e Lívia Aguiar | Fotos: Marcelo Camargo | revista Galileu

“Alô? Quem fala?” Aos poucos, a tradicional saudação ao telefone vai perdendo o sentido. Afinal, quase todo mundo usa celular e todos eles indicam o número de quem está ligando. O que pouca gente sabe é que um brasileiro reivindica a invenção do sistema que permite a identificação da chamada. Nélio José Nicolai, mineiro de 71 anos, registrou a patente da primeira versão do dispositivo em 1980, quando o batizou de Bina – sigla de "B identifica o número de A". Apesar de a tecnologia estar disponível em muitos telefones fixos e em virtualmente todos os celulares do mundo, ele nunca recebeu royalties – dinheiro que se paga ao autor de um invento pelo direito de explorá-lo economicamente. Nos últimos 10 anos, ele vendeu casas, carros e até cotas de uma eventual indenização para pagar advogados e processar dezenas de empresas de telefonia. Ele já ganhou 3 ações em primeira instância e uma em segunda. Se vencer a enxurrada de recursos que os réus usam para protelar a decisão final, pode receber uma quantia bilionária, que o colocaria entre os homens mais ricos do mundo.

A história de Nicolai com o Bina começa na cidade de Brasília, em 1977, quando trabalhava na Telebrasília, operadora local da Telebrás, antiga holding estatal de prestação de serviços telefônicos. Formando em eletrotécnica, ele descobriu sua vocação para inventor desde seus primeiro emprego numa empresa de telefonia, a Ericsson. “Quando havia problema na montagem, precisávamos transmiti-los para os laboratórios no exterior e esperar as soluções. Eu comecei a mudar isso, pois já mandava a solução a ser implementada”, diz. Não é só seu relato que confirma o talento para a inovação: ele tem 40 patentes registradas no Inpi (Instituto Nacional de Propriedade Industrial), com as mais variadas funções, desde leitores óticos para deficientes visuais até sistemas de proteção contra clonagem de cartões de crédito.

A ideia do Bina surgiu quando ele tentava resolver o problema de uma antiga brincadeira juvenil – os trotes telefônicos. “A solução veio num sonho.” Para testar, adaptou ao aparelho uma calculadora, que mostrava o número no visor e o imprimia em uma bobina. “Funcionou como primeiro protótipo”, conta. A Telebrasília não o incentivou a desenvolver a ideia por uma razão que hoje pode parecer piada: a estatal achava que identificar o número de quem fazia a chamada seria uma invasão de privacidade. Mesmo assim, Nélio registrou, em 1980, a patente dessa primeira versão do Bina. Dois anos depois, o destino facilitaria sua primeira aplicação prática.

ANTITROTE: Anúncio de um antigo modelo de Bina, cuja primeira versão foi patenteada por Nicolai em 1980. O aparelho era acoplado ao telefone para identificar o número de quem fazia uma chamada

“Eu alugava apartamento em um prédio em que só moravam oficiais dos bombeiros. Acabei os convencendo a fazer uma experiência”, diz Nicolai. Para eles, fugir de trotes era algo muito mais importante do que questões de privacidade. Os 4 aparelhos instalados na central 193 foram produzidos em 1982, por sua primeira empresa, a Sonintel. Era um aparelho pouco maior e mais baixo do que uma caixa de sapato, com cerca de 600 gramas, conectado ao telefone. Até que o invento foi parar em um seminário do extinto Ministério da Desburocratização, e a imprensa o descobriu. “Aí, minha vida começou a mudar. Ninguém mais conseguiu esconder o Bina”, lembra o pai da criança. Seus problemas com a paternidade do dispositivo, porém, já haviam começado.

Coleção de calotes
Antes de abrir sua própria empresa, Nicolai se associou a dois colegas, que teriam copiado a ideia. O mineiro diz que a dupla chegou a registrar uma patente e a lançar e comercializar um produto com a mesma função. O aparelho de Nicolai também despertou a atenção de companhias internacionais. Em 1984, a empresa de telefonia Bell Canada enviou representantes ao Brasil para estabelecer uma parceria com a Telebrasília, de olho no Bina. Naquele ano, ele foi demitido da estatal – antes e depois de sair, no entanto, visitou a empresa algumas vezes, para ajudar na montagem de um protótipo. A colaboração não foi para frente. Ou foi, porque, dois anos depois, surpresa: a Bell anunciou o desenvolvimento de um identificador de chamadas, lançado em 1988. Nicolai não recebeu nenhum crédto pelo produto.

Durante os anos 1980, as centrais telefônicas se modernizaram e Nicolai inventou uma nova versão do dispositivo, cuja patente seria solicitada em 1992 e aprovada em 1997. O inventor diz que, no mesmo ano, assinou contratos de licença de exploração da patente com a sueca Ericsson, para instalar e comercializar o Bina no Brasil por dois anos. Ele transferiu a tecnologia e, quando foi às telefônicas cobrar o pagamento de royalties, outra surpresa. “Avisaram que não me pagariam. Me mandavam ir à Justiça e, quem sabe, meus bisnetos veriam alguma coisa.”

A essa altura, ele também havia cedido licenças de exploração da patente para outra fabricante de telefones brasileira, que chegou a honrar os contratos por 10 meses. Até que a empresa interrompeu a produção do aparelho para importar um similar de Hong Kong – que tampouco pagava royalties a Nicolai. Cansado de tomar calotes, ele finalmente decidiu que estava na hora de ir aos tribunais, como a outra empresa havia ironicamente o instruído a fazer.

O tango judicial
Mas, afinal, Nicolai é ou não é o inventor do identificador de chamadas? E, se ele criou mesmo essa tecnologia, pode-se dizer que ela é usada por aparelhos de celular modernos? Nos dois casos, há controvérsias, muito exploradas nos tribunais.

Em algumas das ações, a Justiça já decidiu que, sim, Nélio José Nicolai é inventor do Bina e merece os royalties. As telefônicas brasileiras que vendiam o aparelho e o serviço e pagariam a conta recorreram. A Ericsson, por sua vez, entrou em 2003 com uma ação para anular a patente de 1992, alvo da disputa.

“Ela não tem suficiência descritiva nem atividade inventiva”, diz Clóvis Silveira, engenheiro eletrônico, sócio de um escritório de patentes contratado por réus das ações de Nicolai. Traduzindo: a patente não explicaria direito como funciona a tecnologia e, além disso, seria sobre uma tecnologia já existente. O que descumpriria dois requisitos para registro de um invento. Mas, então, porque a patente foi aceita?

Pois é, até o Inpi já mudou de opinião sobre o caso. Consultado pela Justiça, o instituto concordou que a patente não era válida e, depois, voltou atrás. Diante da confusão, a Justiça encomendou um laudo independente. Enquanto esse processo não é decidido, as outras ações estão paralisadas, desde 2005. “Por lei, um processo só pode ser suspenso por um ano. É por isso que o Nélio fica possesso”, diz Luis Felipe Belmonte, advogado do mineiro.

E a outra pergunta, sobre a tecnologia que Nicolai diz ter inventado ser a base para os celulares modernos? “Hoje, a patente perdeu o sentido, pois qualquer informação pode ser trocada entre as partes. O número de quem chama é apenas mais uma”, opina Hermes Magalhães, do departamento de Engenharia Eletrônica da UFMG. Hani Yehia, do Inova, laboratório de inovação da mesma universidade, discorda: “É como dizer que um avião de hoje não é o mesmo que um avião de 100 anos atrás. A telefonia mudou muito, mas os sinais que chegam à central telefônica são praticamente os mesmos."

O caso de Nicolai não é uma exceção. A história está cheia de brigas por propriedade intelectual, a começar pela do próprio telefone. Graham Bell levou a fama, mas registrou sua patente no mesmo dia (e horas depois) que outro inventor, chamado Elisha Gray, fez o mesmo para um equipamento de transmissão de voz. Bell venceu a briga nos tribunais, mas até hoje alguns historiadores defendem que ele roubou a ideia de Gray. Atualmente, mais do que nunca, essas disputas são decisivas no mercado de telecomunicações. No final, e no caso do Bina não será diferente, a opinão que vale é a da Justiça.

Uma informação, no entanto, indica que Nicolai tem chance de levar a fatura. E ela vem, justamente, da maior empresa processada por Nicolai – a Vivo. Como tem ações na Bolsa de Nova York, a companhia é obrigada a apresentar relatórios à Comissão de Valores Mobiliários dos EUA, com informações sobre, entre outras coisas, o risco de perder processos. No relatório de 31 de março de 2010 está escrito: “Acreditamos, com base no parecer de nossos consultores jurídicos externos, que a probabilidade de um resultado desfavorável é possível.”

TROCANDO EM NÚMEROS
Se Nicolai vencer, a Justiça terá outro trabalho complicado: decidir o valor da indenização, que possivelmente seria a maior já paga do país. No Brasil, uma patente tem validade de 20 anos. O valor pago por ela é um percentual – variável – do total arrecadado com o serviço ou produto que ela descreve. Nas ações, o brasileiro pede 25%. A base de cálculo seria o faturamento das empresas de telefonia com o Bina ao longo de 20 anos. E alguém paga pela identificação de chamadas? Hoje, quase ninguém. Mas nem sempre foi assim.

“Isso está nas contas de telefone. O valor do Bina vinha discriminado. Depois, as telefônicas passaram a usar ‘identificação de chamadas’ e afinal pararam de citar a cobrança na fatura”, diz Belmonte, acrescentando que a tarifa média praticada era de R$ 10 por mês. O fato de a patente de Nicolai expirar neste ano, e de as telefônicas não cobrarem mais pelo serviço, não elimina a dívida, que é calculada retroativamente.

A título de exemplo, o advogado faz as contas usando uma taxa de 20% de royalties, e chega ao resultado de R$ 113 bilhões (veja na página anterior). Com juros e correção monetária, o valor chegaria a cerca de R$ 185 bilhões. Para se ter uma ideia, essa fortuna faria do brasileiro o homem mais rico do mundo, com uma “folga” de 40 bilhões sobre o segundo colocado, o mexicano Carlos Slim Helu – que, aliás, é dono da Claro, controladora de telefônicas alvo das ações.

Você deve estar pensando: “ah, esse cálculo é um exagero!”. Nem tanto. No único processo vencido por Nicolai em que a Justiça já arbitrou a indenização, o valor foi de R$ 550 milhões. A ação era contra a Americel, subsidiária da Claro. Como o inventor processa 40 companhias, no total, e essa é uma das menores da lista, as cifras provavelmente chegariam mesmo às dezenas de bilhões de reais.

A facada seria tão grande que as empresas de telefonia já estão apelando para terceiros. Telebrasil e Abinee, duas associações de classe, enviaram petições à Anatel, solicitando sua intervenção "em defesa dos interesses do setor". No documento, elas dizem que o prejuízo será do consumidor, "que, além de ser privado do serviço, será certamente onerado com o repasse de eventuais custos incorridos pelas operadoras".

A grana viria em boa hora para Nicolai, que vendeu 3 apartamentos para pagar honorários de advogados e sustentar a família – ele não trabalha desde que foi demitido da Telebrasília, há quase 30 anos. “Nenhuma telefônica me quer por perto, né?” Nenhum de seus 4 filhos trabalha, tampouco, todos no compasso de espera pela indenização redentora. Quando a situação aperta, o mineiro vende cotas de 1% da indenização – já foram 15, a última teria sido negociada por R$ 100 mil. Apesar disso, ele está com o nome sujo na praça, graças a uma dívida de cartão de crédito. “Sou muito conhecido no Serasa”, diz, bem-humorado, apesar de tudo. “Não consigo comprar nem um telefone.” De seu celular pré-pago, ele admite que talvez só seus netos vejam a cor do dinheiro. Mas torce para que a Justiça brasileira não deixe isso acontecer. “Há mais de 10 anos, todo dia imagino que o resultado vai sair no mês que vem.”

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